Menino Masculino

Sobem no busão e Renato passa o Bilhete Único contente ao perceber que há assentos vazios pros dois. Caminha e protege o lugar para Tarcísio que agradece, senta e pergunta:

– Sabe que eu nunca entendi essa sua parada de evangélico? Como é que pode?

– Vixe, foi um longo caminho.

– Mas a igreja tem um puta preconceito, só falam mal de viado o tempo todo, pra eles somos umas aberrações.

– Nem todo o lugar é assim

– Ah não?

– Foi a pastora da minha igreja que me ajudou. Ela conhecia minha história e sabia o quanto sofri porque achava que estava traindo a palavra. Foi ela que disse: “Deus está cagando pra sua sexualidade. Seja quem você é. Você é muito mais fiel do que muita gente, tenha certeza. Seja livre com Deus.

– hahaha, falou assim, cagando?

– Sim. Entendi que Deus está em todas as coisas, no palavrão, no amor, no meu coração e nas minhas ações. Até no homicídio tem o dedo dele.

– Gostei dessa pastora. E o que ela conhece da sua história?

Renato ficou pensativo durante um tempo. Deveria mostrar? Sim. Deveria confiar? Achava que não, mas sacou o celular assim mesmo. O pequeno segredo pesava. Devia livrar-se dele, deixar pra trás, como o ônibus que se despedia do terminal.

– Numcreio, é você mesmo cantando?

– Sim, tem uns dez anos

– Mas e aí, o que aconteceu?

– O que sempre acontece. Meus pais tentaram ignorar quem eu sou. Tentei fazer a vontade deles. Quando tomei coragem e explodi, vieram com exorcismo, cura gay e o caraio. Não funcionou, me mandaram pra São Paulo. Escaparam da vergonha e enterraram um filho.

– Nossa que história a sua.

Ficaram em silêncio um tempo.

Tarcísio virou o rosto e deu um selinho em Renato.

– Só falta votar no Bolsonaro.

Renato sorriu, escolheu uma música no Spotify e dividiu o fone com Tarcísio enquanto o ônibus navegava na avenida.

No Youtube:

O peso da filha

Saímos do médico e Amanda minha filha pediu colo com manha. Esqueci minha hérnia de disco e ela pulou e me abraçou como se o chão queimasse, como se um precipício abrisse sob seus pés. Eu a agarrei como se a salvasse. Olhei para Carla minha ex e nossos olhares brilhavam descontentes, aliviados e um tanto frios.

Descontentes porque o médico era uma bosta, um caixa de supermercado prepotente, que adestrava seu desdém para não perder o cliente. Fez duas perguntas e escreveu a receita. Era o que valiam os 40 reais da consulta, era o preço de não ter médico no posto e a fila no pronto-socorro demorar duas horas. Pagamos pouco e tínhamos a receita, esses eram os alívios, alívios temporários, pois certamente um susto nos espreitava: o valor do remédio. O olhar um tanto frio não sei dizer o porquê.

Atravessamos o Parque da Luz e Carla achou lindo o pôr do sol pintar o céu atrás do relógio. Tirou uma foto com o celular e me mostrou, perguntou se estava boa. Disse que estava, mas mentia, estava escura. Amanda se mexeu para vê-la e logo deitou a cabeça no meu ombro, em um silêncio crítico.

 

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Encontramos o Toshio na Estação da Luz. O relógio marcava 17:54. Perguntou de Amanda num tom de amigo bom, sem drama nem desdém. Fez um carinho na cabeça dela e ela aceitou de boa, mas respondeu sua pergunta com um grunhido. Fui eu que falei do médico e dos remédios. Toshio disse que tinha descontos em uma farmácia na Xavier de Toledo, poderíamos ir pra lá já se quiséssemos. Como se coreografia fosse, os três olharam na plataforma da estação o trem que chegava:

 

 

Estávamos todos bovinamente acostumados com esse desrespeito, ainda que a situação fosse melhor do que no passado. Mas ir até Francisco Morato amassados com uma criança doente no colo não era opção. Resolver o remédio seria razoável. Sem precisar esclarecer esse raciocínio comum, Carla propôs e nossos passos, acompanhados de leves movimentos de cabeça, selaram o acordo. Ajeitei o peso de Amanda no braço esquerdo, senti uma pontada na coluna e fui na frente. Sabia que agora Toshio e Carla se beijavam e se abraçavam. Queriam evitar constrangimento, mas era uma cautela inútil. Eles estavam juntos há quase um ano. E eu era outro.

Vou ser rápido. Não aceitei a separação no início, não encostei nela, mas quebrei seu irmão que veio se meter onde não era chamado – uma vontade antiga que saciei. “Aé, então que se foda!”, gritei por mensagem porque não tinha zapzap na época. Sumi por um ano. Conheci Sueli. Ela costurou a reconciliação. Aceitei tudo, só não pedi desculpa pro irmão da Carla – aquilo foi um presente. Carla também deixou quieto as pensões atrasadas. Sueli devia ser advogada de família. É manicure.

Cásper Líbero direto e paramos no farol perto do Santa Efigênia. Arrumei Amanda pela terceira vez. Tava foda. Na igreja tinha missa, não sei seu nome, nunca nem entrei, engraçado. Carla fez o sinal da cruz e eu pensei na cruz e em trocar com Jesus: “Cara, leva minha filha que eu faço a sua”. Fiquei feliz com a heresia. Ouvimos ruídos de manifestação, um cara gritando num carro de som certamente, e descemos até o Anhangabaú. Toda manifestação merece apoio, é direito. Até manifestações escrotas com a bandeira do Brasil e a camisa da seleção. O dia que não pudermos sair às ruas, fudeu. Fomos. Tudo isso aconteceu sem dizer palavra, havia uma natural sintonia entre nós.

Era greve dos carteiros. Nem sabia que os Correios estavam em greve. Se o google ou o facebook falham, desaba meu mundo. Os carteiros param e eu os ignoro. Carla tirou outra foto no celular e mostrou pro Toshio e para mim. Amanda nem quis saber. Eu olhei pra ele e rimos. Tava uma bosta. Ela ficou furiosa por ver seu talento fotográfico depreciado e feliz pela cumplicidade de seus homens.

 

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Cruzávamos o Anhangabaú, eu levando minha filha e uma dor nas costas, Carla e Toshio de mãos dadas, sorrindo. Eu me sentia bem e lembrava de Sueli, ela poderia estar aqui. Certamente leria a dor em meu rosto e arrancaria Amanda de meus braços sorrindo, lembrando da minha hérnia.  Sueli é minha sorte.

Subimos pelas escadas do Viaduto do Chá mesmo. Minhas costas xingavam juiz no estádio. Não aguentava mais, mas tinha culpa. Não podia deixar minha filha, nunca mais a abandonaria, queria ela perto de mim, tinha ela perto de mim, e esse pensamento me deu força, ajeitei o corpo como se recém começasse, como se ainda estivesse na Luz e abracei-a um pouco mais forte, como se quisesse que aquela energia, aquele amor – sim, era amor que sentia! – grudasse em seu corpo. O amor é uma energia mais poderosa que qualquer hidrelétrica.

Caminhávamos sobre o Viaduto quando Amanda gritou: “Olha pai, olha!”. Um vendedor jogava um objeto colorido e iluminado pro alto, tão alto que quase desaparecia no céu escuro. Depois descia mansamente, até aterrissar em suas mãos como se fosse uma flor. Nos acercamos e Amanda quis descer pra olhar de perto o objeto. Seus pés tocaram o chão e meu corpo se aproximou de um êxtase. Eu olhei pro vendedor como se sentisse um milagre. Perguntei como se chamava o brinquedo e ele disse: “Tem vários nomes, mas eu batizei de drone da Bahia”, e eu tive certeza que deus vendia drones da Bahia no Viaduto do Chá.  Cumprimentei com reverência sua divina presença, queria abraçá-lo e ele não entendeu nada.

Fiquei olhando o brinquedo e Amanda segurou minha mão e disse, como se visse as cataratas em Foz do Iguaçu: “É incrível, né, pai”. Segurava minha mão para se equilibrar diante da vertigem que a beleza causava, uma beleza que enfrentava a noite e voltava. Olhava o drone da Bahia e segurava sua mãozinha e amava Amanda mais profundamente do que qualquer coisa nessa vida.

Carla se aproximou e disse: “Olha, eu filmei o brinquedo”. Amanda se irritou: “mãe, para de filmar tudo, que chato!”. Carla nem ligou e perguntou: “ficou bom?”

 

Fotografias e coincidências

Procurava uma crônica no Parque Ibirapuera. O Ibira quase vazio, poucos skatistas sob a marquise, corredores minguavam, famílias pingavam. Pareciam estereótipos. Poderia discorrer sobre as árvores e a grama; desisti da ideia ousada. Caminhando perdido pra lá e cá, encontrei uma mulher mergulhada no lago de seus pensamentos:

 

 

Ao invés de ir ao Museu Afro Brasil, ao MAM ou a OCA – há uma exposição sobre gastronomia – decidi ir ao MAC USP, no antigo prédio do DETRAN. Precisava de um horizonte, um alvo distante, escala gigante – o que o terraço do oitavo andar do edifício oferece fartamente. Visitaria novamente a “Transarquitetônica”de Henrique Oliveira. No mais, passaria os olhos em algumas obras, como quem passeia em um jardim atrás de uma flor diferente.

A obra de Oliveira, que estava no subsolo, partira. Havia duas novas exposições. Uma comemorava os 80 anos do MAC USP e parecia um depósito, um amontoado de bustos, máscaras, pinturas e animais empalhados. A outra era de Samsom Flexor e seus abstracionismos, como nesse estudo.

 

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Subi até o oitavo andar e fiquei um bom tempo admirando a vista.

 

 

Resolvi ir embora. Mas antes, passei no terceiro andar para ver a exposição Flieg, fotógrafo: Indústria, Design, Publicidade, Arquitetura e Arte. Não me lembrava dela, que termina no dia 22 de fevereiro. São fotos do início da industrialização no Brasil nos anos 50 e 60.  São fábricas de automóveis, geradores de energia, hidrelétricas, a refinaria de Cubatão, o desenvolvimento visto com um olhar apurado, que em alguns casos beira a ficção científica. No caminho, encontrei um senhor conversando com dois caras sobre as obras. No fim da mostra, um vídeo, uma entrevista. E quem era o entrevistado? Aquele senhor. Sim, Flieg visitava suas fotos.

Tinha que conversar com ele. Na verdade, queria ouvi-lo. Seria uma monitoria inédita. Aproximei-me do grupo e, sem pensar em nada melhor, falei: “Parabéns, as fotos são excelentes. O senhor já viu São Paulo S.A.?”. Não tinha visto o filme do Person e respondeu algo que não entendi. Os dois caras com ele trabalhavam no Instituto Moreira Salles e foram responsáveis pela revelação das fotos e montagem da exposição. Detalhe: a mostra foi inaugurada em setembro de 2014, mas era a primeira vez que Flieg a visitava. Teceu poucas críticas e afirmou gostar do que presenciou.

 

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Um dos caras chamava-se Cídio, também gostava do filme e lembrou da associar as fotografias com o construtivismo russo. Flieg disse que achava engraçado as fotos de seu arquivo, que estavam esquecidas porque ele não gostou delas na época, serem expostas. Contava alguns detalhes das fotos, os lugares, as pessoas, o que aconteceu naquele dia. “Tá vendo essa sombra aqui? É aquela ali”, e apontou uma torre metálica que era protagonista em uma imagem e apenas sombra em outra foto. Estava com um bom humor contagiante.

Conversávamos enquanto esse fotógrafo de 91 anos levava uma cadeira de rodas pra passear. Por prudência levaram-na. Virou piada. Hans Gunter Flieg é judeu e nasceu na Alemanha. Chegou ao Brasil em 1939. Poucos meses depois, Hiltler invadiu a Polônia. Foi por pouco. Cídio disse que os jovens judeus, antes de partirem faziam cursos técnicos, para chegar nos novos destinos com alguma profissão. Flieg já era fotógrafo. Outro curiosidade. Em Portugal os judeus convertidos escolheram sobrenomes de árvores frutíferas: Oliveira, Pereira, Amorim. Na Itália e na Alemanha, optaram por nomes de amimais. Flieg, em alemão, significa mosca.

 

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No Brasil fez trabalhos publicitários e catálogos de indústrias. Especializou-se também em arte, fotografando a primeira Bienal de São Paulo. Na saída, diretores do museu foram encontrá-lo. Flieg perguntou se eles tinha um cafezinho. Claro. Pôs a mão no meu ombro e disse “então posso te convidar para tomar um café?”. E lá fomos todos e a cadeira de rodas dirigida pelo velho. Achei inusitado estar na mesa de reunião da diretoria do museu conversando e bebendo café. Os caras do IMS, de propósito, não revelaram minha identidade, afinal um simples visitante jamais poderia estar ali, ainda que devesse.

Foi Flieg quem propôs subirmos ao oitavo andar. Queria conhecer a vista. Levou a cadeira de rodas para que ela também participasse.  Perguntou se hoje em dia alguém fotografava os parques industriais, construções gigantescas, o desenvolvimento no Brasil. Não soubemos responder. Ali tirei essas fotos.

 

 

Fim de visita. Na entrada, esperavam um táxi quando o fotógrafo puxou papo com um casal de jovens. Mais uma coincidência. O jovem tinha família alemã e parte dela era Flieg. Inacreditável, eram parentes distantes. Ele prometeu comunicar-se. O táxi chegou, nos despedimos entre sorrisos e eles partiram. Resolvi caminhar, subir a Brigadeiro e, desse tempo, ver uma exposição de fotos sobre saudade no Itaú Cultural.

Hartung e Romário

O Praça Ramos parou no ponto final; desci e sorri para um mendigo encostado na mureta pra Ladeira da Memória. Seu rosto dizia: “É… tô bêbado, meu amigo”. Devia ter puxado conversa. Teria contado que vi uns óculos pela metade no chão do coletivo. Eram haste e lente perdidas e órfãs. Ninguém no ônibus parecia ser o dono da outra parte. Pensei em alguém puto da vida, andando por São Paulo só com uma lente na cara, só de raiva porque seus óculos quebraram. Um pirata moderno. Contasse ao mendigo, talvez ele sorrisse comigo.

Queria ver uma exposição de vídeo-arte na Praça das Artes, perto do Largo do Paissandu. Belo lugar. Me deparei com uma mostra da Mafalda e um monte de gente. Foi difícil, mas encontrei a informação de que aquele era o único evento do lugar. Certamente confundi Praça das Artes com Paço das Artes, na usp. Parabéns. Ao invés de visitar o Quino, rompi com a comodidade e coincidência. Estar com Mafalda é estar em casa, e queria um acidente estético, algo novo e desconhecido pra mim. Fui pro Banco do Brasil ver Hans Hartung e sua Oficina do Gesto.

 

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Hartung (1904-1989) é considerado um dos mestres da arte abstrata e ganha pela primeira vez uma retrospectiva na América Latina. Nasceu na Alemanha e foi para França em 1926, vivendo definitivamente no país após a ascensão nazista nos anos 30. Lutou na Legião Estrangeira durante a Segunda Guerra Mundial e teve a perna direita amputada. Sua obra está ligada ao tachismo. Tache em francês significa mancha.

 

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Ninguém avisou, mas se quisesse uma ordem cronológica deveria começar pelo quarto andar e descer. Fui subindo e comecei pelos vídeos que documentam o cara trampando. Foi ótimo, um exemplo que me fez recordar da dramaticidade de pintar, da aventura de avançar com um pincel ou spray sobre uma tela ou qualquer superfície, pintar, desenhar, esse movimento sábio e selvagem que tece o imprevisível com harmonia. Não vou negar, o drama era também alimentado pelo vídeo estourado e pela idade de Hartung, que pintava numa cadeira de rodas. Tem um vídeo institucional que mostra um pouco disso.

 

 

Vassouras, aspiradores de pó, folhas e galhos de árvores, compressores, maçaricos, são vários os objetos que ele usava como ferramenta de trabalho. Gostei muito desses vinis velozes e incompletos, que ficam no terceiro andar, onde residem obras da década de 70 e 80.

 

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No quarto andar havia algumas de suas primeiras obras, quando ainda tinha preocupações figurativas. Fui embora e esqueci de visitar o subsolo.

 

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Sai de lá satisfeito e sedento pra uma caminhada pelo centro. Lembrei de um amigo me dizer que imigrantes africanos estavam frequentando igrejas evangélicas perto da Duque de Caxias. Que até estavam tocando nas bandas e a rítmica africana invadia os cultos. Isso seria interessante. Fui pra lá.

Dessa região próxima ao Terminal Princesa Isabel, pouco conheço. Depois da São João com a Ipiranga, tentei ir pelo miolo. Perguntei pra duas moças onde estava a Duque. Uma delas respondeu “é só seguir reto mesmo”.

 

Eram Lídia e Mirian. Momentos antes, Lídia inventou que compraria cigarros quando Mirian avisou que iria embora. Estavam as duas na casa de uma amiga em comum. Lídia disse que aproveitaria a carona do elevador. Inventava. Tinham que conversar. Passaram o portão do prédio e Lídia soltou seca: “Te acompanho até tua casa”. Mirian consentiu. No meio do caminho um cara perguntou onde era a Duque e Lídia respondeu: “vai reto”, com simpatia. Atravessaram a rua e Lídia aproveitou o ânimo – dar a informação lhe destravou a voz – e anunciou: “Vou me separar de seu filho”. Mirian se esforçou para não interromper o passo, para não tropeçar surpresa nem indignação.  Andaram mais três quarteirões em silêncio, em silêncio viraram à direita e pararam na frente do prédio. O portão se abriu, Mírian entrou. Sabia de tudo o que o filho tinha feito, não encontrava palavras nem tinha forças para contestá-la, quiçá defendê-lo. Era mãe mas ninguém merecia, era justiça a separação. Lídia parada esperava ansiosa uma resposta. Apenas ouviu a voz constrangida: “Fica com deus minha filha.”

 

Procurei as bandas de africanos evangélicos e encontrei nada. Passei pela Praça Princesa Isabel e vi uma galera jogando uma espécie de tênis com bola de futebol. Melhor: um tamboréu sem rede, com os pés e uma bola de futebol. Estava tentando entender como eles jogavam aquilo quando a bola escapou em direção à Avenida Duque de Caxias. Um cara que caminhava ali próximo apressou o passo e salvou a redonda, dominou e devolveu à meia-altura. Um menino se atrapalhou todo e matou de canela, empurrando a bola com ainda mais velocidade pra avenida. O cara não desanimou. Disparou, feito Cafú pra cruzar na linha de fundo, alcançando-a e passando de primeira, inclinando o pé, usando-o como spray ou pincel sobre o espaço, assegurando que ela viajasse rente ao chão e facilitasse o domínio do menino. Passou a bola e seguiu todo marrento, meio Romário, o rosto repleto de recordações e arte. Aposto: aquele passe valeu o seu dia.

 

Escorregões e Cidade Gráfica

Desci do vagão na Estação Brigadeiro e chamou minha atenção a pequena explosão de uma lata de refrigerante na mão de uma moça, deixando um rastro preto no piso marrom e claro da plataforma. Ela seguiu indiferente, bebendo tranquila, como se aquilo não fosse com ela. O chão molhado esperava um acidente. O que ela poderia fazer? Avisar um funcionário? Poderia ao menos parar e se constranger? E eu, que só me indignava? Logo a entendi. A culpa não era dela. Era da lata.

 

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Chovia forte e corri até o edifício branco. Entrei na Cidade Gráfica, que fica em cartaz até 4 de janeiro no Itaú Cultural. São dois andares de exposição, com visões poéticas e ativistas do urbano. No andar inferior fiquei viciado no Atlas Ambulante, de Renata Marquez e Wellington Cançado. Trata-se de vídeos+livros com as histórias de cinco trabalhadores informais que transitam por Belo Horizonte caçando clientes. São profissionais em extinção: o amolador Osmar Fernandes, Antonio Lamas que vende bijus e caminha 30 Km por dia, Robson que produz e oferece seus pirulitos puxa-puxa, Jeferson e seus algodões doces. Nos vídeos, seus depoimentos revelam os detalhes e os percursos de seus ofícios. No livro, cartografias, partituras e fotografias do seu cotidiano.

O coletivo Garapa lembrou o “sumiço” dos edifícios São Vito e Mercúrio, na região central da cidade, com esse jogo de imagem (parece que chama impressão lenticular). Mais uma vitória da especulação imobiliária, empurrando família pobres para a periferia.

 

 

Muito legais também Tipos Malditos, de Marcelo Drummond, que levantou a tipografia de placas e letreiros em MG, BA e RO, mostrando a linguagem publicitária de pequenos comerciantes no interior do país. Na mesma linha, Letras Q Flutuam, de Sâmia Batista e Fernanda Martins, resgata a técnica de pintores de nomes de barco em Belém-PA, em um curto e interessante documentário. Vale mencionar ainda o trabalho do Coletivo Frente 3 de Fevereiro, em um vídeo com torcidas organizadas que fala de política e racismo.

 

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Cheguei ao andar superior e fui prontamente avisado pela monitora: “Cuidado que uma goteira deixou uma poça ali”. De novo, e em tão pouco tempo, o chão molhado esperava um acidente. Noiei: seria um aviso da vida pra tomar cuidado onde piso? Precisava achar sentido naquilo? Claro que não. Ai meu São Camus, alimentai-me de absurdos. Perguntei por que não colocavam aquela placa amarela no chão e ela me surpreendeu, dizendo que os responsáveis não permitiram porque feria a linguagem da mostra. Uma exposição repleta de intervenções na cidade, não aceitava uma intervenção preventiva?

Nesse andar, gostei mais de Av. Celso Garcia 2004/2014, de Lucia Mindlin Loeb. Em duas telas de tevê, montagens de fotos mostram as mudanças na avenida da Zona Leste durante esses 10 anos. É um retrato do lema da cidade: construir, destruir, recomeçar – nada de “não sou conduzido, conduzo”. É a soma de especulação + cidade limpa. Daria pra escrever várias pequenas histórias. Recortei um trecho – o hotel reformado, o imóvel da esquina dá lugar a um prédio… – e fiz uma microcrônica dentro dessa crônica (aumente pra ver melhor, desculpe a foto estourada).

 

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Carlos comia a coxinha fria e pensava. Faz dez anos que trabalho aqui. Quase tudo mudou, menos o bar que continua com suas mesas e cadeiras vermelhas – vai: pintou o chão de vermelho e ganhou um toldo – vermelho. O que era pobre desapareceu, quase tudo encareceu. A loja da esquina do Seu Onofre e o curtição que era em cima foram derrubados. Agora tem um prédio novo, de uma gente que só come aqui em caso de emergência. Por isso o toldo novo. Logo mais vão construir outro edifício aqui do lado. Expulsaram as pessoas, o cartaz; até o ponto de ônibus foi embora pra deixar livre a entrada dos carros e das pessoas: pra prédio, tudo. Não sei como o Hotel da Lua de Mel ainda tá em pé – agora chama Lua e tá laranja. Carlos suspirou: lembrou das noites no Lua com Laura, sobrinha de seu Onofre, que trabalhava numa loja dois quarteirões pra frente.

 

Antes de ver a exposição EntreVistas, de Cláudia Jaguaribe no último andar subsolo, fui tomar um café na esquina, na Praça Oswaldo Cruz. Nada contra o café do Itaú, mas a chuva cessara e precisava de um pouco de rua.  No bar, dois caras conversavam aos berros, equilibrando em suas cabeças as oito garrafas de cerveja que pairavam sobre o balcão. Um deles gritava: “Eu nunca xingo ninguém, não se pode ofender ninguém nessa vida, respeito é tudo, vou me vingar dele, pode escrever…”. Os dois foram fumar na calçada, deixando o bar em silêncio. Tomei meu café, paguei e quando saía, ouvi o cara que gritava escorregar em sua ética: “Você acha que eu tô errado?!! A-é?!! Então vai tomá no meio do seu cu”.

 

Voltei pro Itaú com essa ironia no bolso. A exposição de Jaguaribe dialoga bastante com São Paulo Dentro e Fora, de Paulo Pampolin, visitada anteriormente. A maioria das fotografias mostram os interiores de residências ricas de Sampa. No centro da sala, objetos geométricos são recheados de impressões e projeções, resultando uma narrativa complexa e confusa, como a própria cidade. Fica em cartaz até 11 de janeiro.

 

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Teatro de rua e Fotografias Dentro e Fora

Deixei as escadas rolantes do metrô me levarem até a Praça da Sé e desembarquei no Caixa Cultural. Na entrada do edifício dois seguranças permitiram que eu e uma moça branca entrássemos, sem perguntas. Logo atrás, barraram dois rapazes negros de bermuda e sotaque da zona sul. Parei para ouvir o rápido interrogatório. Disseram que iriam ver a internet (computadores são oferecidos gratuitamente). Justificaram-se. Olhares duvidosos, justificaram-se de novo. Prometeram bom comportamento. Só faltou apelar pro Papa Francisco. Enfim, passaram pelos vigias e andaram com pressa para seu encontro.

A ideia é um rolê sobre urbanismo. Primeiro ver a exposição São Paulo: Dentro e Fora, de Paulo Pampolin. São 30 fotografias sobre moradia em Sampa. Depois, conferir Cidades Gráficas no Itaú Cultural. Nessa metrópole, com um déficit de habitacional desesperador e ao mesmo tempo com uma quantidade enorme de apartamentos e terrenos vazios obedecendo a especulação imobiliária, uma mostra sobre o tema é sempre bem-vinda.

A simpática monitora, cujo nome não lembro, mas que era do Recife – o melhor Carnaval que eu conheço – me ajudou bastante. A primeira parte retratava as pessoas que vivem nos edifícios da região da Luz, aprisionados em seus apartamentos com medo da cracolândia. A segunda parte é um mural com fotos feitas pelos moradores do Cine Marrocos, em uma ocupação do MSTS (Movimento Sem-Teto São Paulo). Os próprios moradores as escolheram.  Enquanto víamos outras fotos urbanas na terceira parte, que ressalta mais a rua, o fora, um jovem se aproximou e conversou com a monitora:

 

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Segui enquanto eles continuaram conversando. A exposição é pequena mas vale a visita. No prédio ainda há uma grande mostra com 100 obras do gravurista e muralista Poty Lazzarotto, que ainda não visitei.

Antes de seguir pra Paulista, parei numa lanchonete na esquina com a Benjamim Constant:  um café e um enroladinho de presunto e queijo, por favor. Encostei no balcão e logo um teatro cotidiano se formou e assisti à seguinte cena:

 

ATO ÚNICO

(Lanchonete, um caixa com 40 anos, quatro funcionários jovens atrás do balcão, Ademir, 60 anos)

 

ADEMIR  (Na rua, em frente à lanchonete, grita para todos ouvirem)

– Ô corno! Ô corno! Você não! O Outro!

(Todos os funcionários riem)

ADEMIR – Ô viado! Ô viado! Não você, o outro, do lado, de azul!

CAIXA (grita) – Você ainda vai tomar porrada um dia, é muito folgado!

(ADEMIR entra na lanchonete)

CAIXA – Sai daqui! Não quero maloquero na minha lanchonete, Fora!

ADEMIR – Sou maloquero, corintiano e sofredor sim, ouviu? Só não sou ladrão. E também não sou viado, que nem todo mundo que trabalha aqui!

(Todos funcionários riem)

CAIXA – Acabou de sair o bolo, vai querer? Tá quentinho.

ADEMIR  – Opa!

(Funcionário 1 olha pra cliente (eu))

FUNCIONÁRIO 1 – Não estranha não, que é maloquero mas é gente boa. Normalmente ele vende loteria federal e bolão de uma lotérica, mas hoje tá vendendo água porque perdeu todo o dinheiro no bingo ontem. A gente vende a água mais barata pra ele. Não é seu Ademir?

ADEMIR – Perdi no bingo nada seu viado!

FUNCIONÁRIO 2 – Eita, tem alguma coisa contra viado, é?

ADEMIR  – Eu não tenho nada contra ninguém, meu amigo. É só o costume.

 

A cena continuou, mas fui até o caixa e paguei a conta, seis conto acho. Decidi ir de metrô pra ver o Cidades Gráficas. Mas isso fica pra outro post.

 

Caminhos da arte afro – parte 1

Quem gosta de arte, tá sem grana ou é mão de vaca, tem que visitar o Masp às terças-feiras, afinal a entrada é gratuita (o ingresso custa 15 reais nos outros dias).   Havia a exposição de Julian Schnabel, a do acervo, mas estava lá apenas por um motivo. Visitar “Do Coração da África“, sobre arte iorubá, antes do seu fim, no dia 7 de dezembro.

 

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Desci na estação Trianon, fui caminhando pela Paulista e quando cheguei, antes da entrada da bilheteria um cara me parou e me ofereceu suas poesias: “Grito de Dor”, pequeno livro de 8 páginas em papel sulfite. O nome dele é Leonardo e recusou-se a tirar uma foto:

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Entreguei cinco conto na sua mão. Menos pela poesia, mais para ajudar na viagem. Também já mochilei, mas trampando pela internet tinha a sobrevivência garantida. Nesse estilo nunca viajei, e não faço isso hoje porque talvez por não produza algo que se venda na rua, talvez por ter quase quarenta, talvez por simplesmente não ter coragem – ainda que em minhas viagens a estrada tenha ensinado que todo perrengue tem solução.

Despedi-me. Peguei o ingresso, deixei a mochila no guarda-volumes e esperei o elevador. O ascensorista foi simpático. Quando eu disse “nível 1” e continuei poucos segundos depois “arte ioruba, né?”, ele respondeu que era no subsolo: “Subimos até o segundo andar e depois te levo lá”, e falou de um jeito que parecia dirigir um táxi, o que era uma verdade naquele momento. Aproveitou pra anunciar todas as exposições e seus respectivos andares. Perguntei qual a exposição que ele mais gostava: “A do acervo, principalmente a Triunfo do Detalhe”, “Por quê?” , “Não gosto de arte contemporânea”  e continuou: “sabia que língua quer dizer tradutor em iorubá?”, “Olha só, não sabia”. A porta se abriu e ele desejou uma boa visita.

A pequena exposição tem 43 peças em 10 expositores, mas é empolgante pelas informações da cultura iorubá e sobretudo pela estátua de Exú, que recebe o visitante. Queria agradecer a minha memória por não carregar o celular. Sem bateria, as fotos são do gúgol.

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Exú é o orixá do movimento e da comunicação. A radicalidade das formas dessa estátua impressiona. É evidente. Negros somos extraterrestres. Os iorubás são 30 milhões de pessoas e vivem principalmente na Nigéria e no Benin. Milhões foram trazidos ao Brasil durante o período escravocrata, sendo uma das principais matrizes de nossa cultura.

Legal também o texto da mostra ressaltar a influência da arte africana na arte vanguardista europeia da primeira metade do século passado, sobretudo Picasso. Foi a ancestralidade africana que desenhou o novo.

 

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Ibejis, estátua de gêmeos

 

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Gèlèdé, máscaras do poder feminino

 

Nas informações das máscaras Gèlèdé pirei com uma frase que dizia que as mulheres iorubas eram independentes economicamente de seus maridos.  Como assim? Mas não é a África atrasada em todos os sentidos? Numa rápida pesquisa, soube que as mulheres eram grandes negociantes, sendo maioria nos mercados. Elas compravam a colheita do cônjuge, vendiam e ficavam com o lucro. Além disso, esse cotidiano comerciante garantia trocas de outros bens simbólicos como notícias, receitas, moda, danças, músicas, estreitando relações sociais, acertando casamentos. As máscaras seriam um reconhecimento do poder da mulher na sociedade.

17 horas. Vi rapidamente e gostei bastante do Julian Schnabel. Queria fazer uma caminhada de arte afro pela cidade, mas vou ter que deixar para amanhã: conhecer o acervo da memória e do viver afro no Jabaquara e passar no museu AfroBrasil no Ibira.

 

A muçulmana joga bola

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Achei novo e bonito e por isso chamou minha atenção: uma muçulmana jogava bola no gramado. Longe da burca, vestia calça laranja e camisa verde recheada de pequenas flores brancas. Ela sorria e corria e escondia pescoço e cabelos. Era isso que a deixava bonita, ela corria e o véu preto balançava, só o rosto exposto, exalando beleza porque era uma muçulmana que jogava bola, trocando passes com um amigo no gramado de domingo.

Era um retrato de liberdade no meio do Parque Ibirapuera. Ela destruía o senso comum com passes quase precisos e um bom domínio da redonda. Chutava de chapa. Era fato não ser a primeira vez que jogava futebol, era evidente que tinha jogado mais vezes, talvez com frequência, talvez com outras garotas islâmicas. Ela enterrava a ideia consagrada que muçulmanas são todas submissas, aprisionadas, donas de casa, inevitavelmente mães, destilando resignação pra comandar o lar. Sei muito bem das injustiças, violências e questões culturais e que estaria diante de uma exceção. Mas naquele momento ela era mais que uma hipótese, era uma verdade que provocava uma generalização invertida: toda muçulmana joga bola.

Associar véu e futebol não era exatamente uma novidade. Já havia visto times femininos em sites e na tevê. Mas quando a vi tão próxima, concordei que nada do que as telas transmitem é sincero. Falta essa presença humana, alcançável e mágica, sem cortes nem edição. Como também faltam o vento e o sol do fim de tarde desbravando brechas entre as árvores, flechando as pessoas que corriam, caminhavam ou bicicletavam. Ela passava a bola para um cara de seus quarenta anos, usando regata, bermuda e descalço. O cara era muito grosso, o que fazia brilhar ainda mais a habilidade da moça, que brincava com um calçado tipo keds.

Foi como um susto. De repente ignorei minha timidez e perguntei se poderia ser goleiro. Fazer gol é mais divertido que só passar a bola, ainda mais com um cara que não consegue fazer uma embaixadinha. Não ponderei que minha intromissão poderia intimidá-la – minha intenção poderia até terminar com a brincadeira. Foi a moça porém que aceitou o convite frente a hesitação do outro.

Tirei o tênis e fiz um gol grande, o dobro do de futsal. Queria saltar. A bola estava com o cara, que ao invés de chutar, passou a bronca pra ela. Foi um passe vergonhoso e tímido, que ela ajeitou com pés de confiança.

Enquanto ela recuava o corpo olhando a bola, eu pensava na minha atitude. Deixo ela fazer o gol? Prontamente me veio uma raiva: tá com pena de quem, machão? Decidi que cataria como se fosse final; ela, parada com as mãos na cintura, olhava a redonda e mirava o gol.

Foram quatro passos antes do chute, que partiu surpreendentemente forte, rasteiro e no canto. A bola avançava e já sabia de tudo. Senti uma vergonha inconsciente que retardou ainda mais minha reação. Saltei, saltei atrasado, me esticando inteiro pro lado esquerdo. Não deu. Gol. Ela soltou um pequeno salto e um sorriso de quem brinca, simplesmente brinca com o mundo. O cara riu como se eu tropeçasse e caísse no chão, caçoando. Levantei-me e, enquanto buscava a bola,  já me sorria uma nostalgia: a imagem daquele véu feliz e toda aquela situação transformavam aquele gol em um dos maiores golaços que presenciei na vida.

Natação, Dalí e Trilhas Sonoras

Piscinas públicas são um inferno e uma salvação. Inferno: já cheguei a nadar com 12 pessoas na mesma raia no Sesc Vila Marina. Salvação: é possível nadar e isso basta; melhor quando estão vazias, apenas quatro pessoas por faixa molhada, todos no mesmo ritmo. Salvam também porque mensalidades de academias aquáticas custam a prestação de uma moto. São boas as piscinas da prefeitura, que na maioria das vezes combinam pouca gente, cuidados razoáveis e águas frias – nos Sescs são aquecidas.

o sonho do nadador egoista

Hoje estou no Sesc Pinheiros. Ajeito os óculos e a touca, confiro o nó da sunga e caio na água. Os primeiros duzentos, trezentos metros são cheios de ansiedade, sinto-me um Cielo, um Phelps, pulmões plenos, nadar parece uma esperança. Respiro a cada cinco braçadas, crawl sempre. Bastam 400 metros para aperceber-me do ridículo, foi tudo um sonho, nadar é difícil, cansa, abro a boca buscando ar feito um rinoceronte insano.

Depois disso, sou invadido por todo tipo de pensamento, a reunião de família no sábado, uma mulher que fiquei e me deixou no vácuo no facebook dias depois, tenho que pagar a mensalidade da MEI, o que farei à noite: tudo boiando comigo, como boias presas ao corpo, ideias líquidas e impregnadas de cloro. É uma saudável terapia que de uma hora pra outra transforma-se em meditação. Mergulho em meu corpo, no cuidado dos movimentos, nos músculos ardendo e como deslizar na água. De repente, esqueço-me. Nadar é bom demais.

Entre prazeres e cansaços, nadei 1600 metros. Uma pena que minhas braçadas no Sesc estejam chegando ao fim. A partir de 1 de janeiro, apenas comerciários utilizarão a piscina. Usuários como eu ficarão de sunga na calçada. Bom, fiz um alongamento meia-boca, tomei banho e submergi em sons e imagens. No mesmo prédio há uma exposição destinada às trilhas sonoras cinematográficas: Música e Cinema:  o casamento do século.

 

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Inaugurada em setembro deste ano, fica em cartaz até o dia 11 de janeiro de 2015 – você não tem desculpa para não ir.  Imperdível pra quem gosta desse casório, mas precisa do mesmo preparo cinéfilo de um Rubens Edwald Filho pra ver tudo de uma vez só.  Muita coisa, todas as etapas de produção, inúmeros olhares, centenas de vídeos. Legal demais exibir a relação entre diretores e músicos:  a reação de Spielberg ao ouvir John Willians tocar a trilha de Tubarão pela primeira vez – aquela mesmo, a antológica, quando o peixão ataca. Ou a intensidade com que o compositor Angelo Badalamenti descreve a criação do tema de Twin Peaks junto com David Linch.

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Há uma sala de projeções com trechos de mais de 70 filmes. Coisa pra caramba. Um corpo que cai, O Amante, Ran, Rio, Dançando na Chuva, Deus e o Diabo. Muitos trechos, achei exagerado, pra ver tudo demora mais de meia hora. Queria colocar alguns exemplos aqui e quando vi, já tinha dez vídeos. Entendi o que se passou. São tantas cenas memoráveis que 70 trechos é pouco.  Só três exemplos: um clipe de Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas e música de Chico Science e Nação Zumbi, a cena final de Acossado de Jean-Luc Godard e a cena do cego em Amelie Poulain, de Jean Pierre Jeunet.

 

 

 

 

Não vi tudo porque fui assaltado pela fome. Não chegava a ser uma fome longa-metragem tipo Avatar, mas era bem mais que um curta, o suficiente pra impaciência dar o bote. Opções na região não faltam como o honesto restaurante do Sesc, mas lembrei dos sandubas do Bar das Batidas, o conhecidíssimo Cú do Padre. Rápido e bom sanduíche de calabresa com picles e queijo por R$ 15.

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Dalí pro Dalí, caminhando. É a segunda vez que visito a exposição de Salvador Dalí no Tomie Ohtake, que mostra o início da carreira do mestre catalão – quando foi influenciado por Picasso e Miró – e seu percurso até o surrealismo.  Mas acho que faltam mais obras surrealistas. Há também vídeos com suas contribuições para o cinema com Disney, Hitchcock e o filme Cão Andaluz, todos disponíveis no youtube. Interessante ver suas ilustrações para livros, que eu nem sabia que ele fazia, uns desenhos sensacionais para uma edição de Dom Quixote de La Mancha. O que mais gostei e por isso voltava, são as ilustrações para Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll:

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Esses rabiscos brancos são reflexos da iluminação. As imagens e os trechos do livro não me deixaram dúvida, tenho que ler Alice. Certamente compraria em um sebo ou no Estante Virtual. Mas isso deixa pra outro dia.

 

Do hip-hop experimental ao punk jazz

Ando buscando novos sons, especialmente experimentais. Em uma época que o mundo parece estagnado e sem saída, apesar dessa intensa velocidade, prefiro apostar em quem se arrisca. Procuro músicos atuais e artistas ou gêneros escondidos em algum canto do século passado – para quem descobre, o velho é sempre novidade.

(Sobre experimentalismo recente, rockeiro e brasileiro, ouça Negro Léo e  seu disco “Ilhas de Calor“.)

Nessa, resolvi tentar o Rdio. Busquei “experimental hip hop”, porque acho o hip-hop elástico e preciso conhecer mais. Surgiram três playlists. Escolhi a de uma tal Jay Kim. Era a primeira. Play. As duas primeiras músicas foram decepcionantes. Se aquilo fosse experimental, Kate Perry faz rock progressivo.

Até que surgiu You take your time, de Mount Kimbie feat. King Krule. Gostei. Também não era assim experimental-tal-tal, mas depois que li a letra no Rock Genius, gostei mais ainda do som, principalmente por causa da voz grave e marcante desse King Krule. Ouvi algumas vezes enquanto fazia outras coisas na net, reparando na melodia melancólica, nas modulações que o cara vazia, no baixo certeiro e nos tambores digitais no final. Dei uma olhada pra ver se tinha vídeo no youtube. Tinha, adolescentes perdidos bandidos em algum subúrbio britânico, tudo em P&B. Tinha um comentário engraçado: “não acredito que é uma mulher cantando:O” Quê? Uma mina cantando? É lógico que tão zoando.

 

 

King Krule-Wikipedia na cabeça: músico britânico, nasceu em 1994, lançou disco em 2013, “6 feet beneath the moon”. Vi alguns vídeos mas não me pegou muito, apesar da baita voz; associação com Clash na hora, Arctic Monkeys também, rock, mas visita o eletrônico sem abandonar a guitarra. Esse cara é daqueles que pode cantar qualquer ritmo. Dá uma olhada em Rock Bottom.

Na sua wiki-apresentação me chamou atenção a seguinte frase: “sua música é difícil de classificar, com elementos de vários gêneros como punk jazz, hip-hop, EDM, darkwave e trip-hop”.

Punk jazz? Não lembrava que isso existia. Tinha que investigar essa fusão. São dois gêneros vitais de uma vivência musical eclética. Quem compactua com o Do it yourself, quem foi a um show bom, vai ouvir punk pro resto da vida. O mesmo com o jazz: depois que seus ouvidos mastigam Mingus, Coltrane ou Hermeto, entre tantos, você está condenado. Estão tatuados nos tímpanos, pra sempre.

O punk jazz. É nome de uma música de Jaco Pastorius e seu Wheather Report, faixa de “Mr. Gone”, álbum de 1978. Foi um dos caminhos do pós-punk entre o final dos 70 – início dos 80. Mantém rebentos até hoje, inclusive no jazzcore. Algumas nomes: James Chance and the Contortions, Lydia Lunch, The Lounge Lizards, The Pop Group, No Wikipedia colocam o Birthday Party, primeira banda de Nick Cave no gênero. Não concordo, mas preciso ouvir mais. Encontrei uma relação de bandas ligadas ao gênero aqui.

Felizmente não é um estilo uniforme. Há bandas mais pro punk – mais sujas e distorcidas, com vocal cru e bateria seca – outras mais pro jazz, formação clássica, guitarra amável, baixão e batera cozinhando para os metais berrarem. Muitas soam como jazz fusion. Resumindo, me parece um período muito efervescente, muita experimentação – danem-se as classificações.  Tem uma porrada de som bom, preciso pesquisar mais. Coisa muito boa, que depois foi engolida pelo pop dos meados dos anos 80 e seu experimentalismo superficial e exagerado.

Se você tem mais informações sobre o gênero ou tem sugestões de banda, manda ver nos comentários. Seguem alguns sons. Dos que eu ouvi o que mais se aproximaria de punk jazz, sem dúvida, é James Chance and Contortions. Grande som. Contort yourself:

 

Bedroom athlete:

 

 

Esse é o insano e exagerado John Zorn & Naked City, a banda fez seis discos entre 1988 e 1993.  Dá pra descobrir de onde o Mike Patton tirou parte de sua inspiração para seus projetos. (Encontrei um show ao vivo com Patton e Zorn) Fui pesquisar quem é esse que berra no vídeo. Trata-se do japonês  Yamatsuka Eye, que chama-se hoje em dia Yamatanka Eye, artista plástico e vocalista da banda nipônica Boredoms.

 

The Pop Group

 

Black Flag não é punk jazz, mas esse disco poderia ser, mesmo sem metais: