Fotografias e coincidências

Procurava uma crônica no Parque Ibirapuera. O Ibira quase vazio, poucos skatistas sob a marquise, corredores minguavam, famílias pingavam. Pareciam estereótipos. Poderia discorrer sobre as árvores e a grama; desisti da ideia ousada. Caminhando perdido pra lá e cá, encontrei uma mulher mergulhada no lago de seus pensamentos:

 

 

Ao invés de ir ao Museu Afro Brasil, ao MAM ou a OCA – há uma exposição sobre gastronomia – decidi ir ao MAC USP, no antigo prédio do DETRAN. Precisava de um horizonte, um alvo distante, escala gigante – o que o terraço do oitavo andar do edifício oferece fartamente. Visitaria novamente a “Transarquitetônica”de Henrique Oliveira. No mais, passaria os olhos em algumas obras, como quem passeia em um jardim atrás de uma flor diferente.

A obra de Oliveira, que estava no subsolo, partira. Havia duas novas exposições. Uma comemorava os 80 anos do MAC USP e parecia um depósito, um amontoado de bustos, máscaras, pinturas e animais empalhados. A outra era de Samsom Flexor e seus abstracionismos, como nesse estudo.

 

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Subi até o oitavo andar e fiquei um bom tempo admirando a vista.

 

 

Resolvi ir embora. Mas antes, passei no terceiro andar para ver a exposição Flieg, fotógrafo: Indústria, Design, Publicidade, Arquitetura e Arte. Não me lembrava dela, que termina no dia 22 de fevereiro. São fotos do início da industrialização no Brasil nos anos 50 e 60.  São fábricas de automóveis, geradores de energia, hidrelétricas, a refinaria de Cubatão, o desenvolvimento visto com um olhar apurado, que em alguns casos beira a ficção científica. No caminho, encontrei um senhor conversando com dois caras sobre as obras. No fim da mostra, um vídeo, uma entrevista. E quem era o entrevistado? Aquele senhor. Sim, Flieg visitava suas fotos.

Tinha que conversar com ele. Na verdade, queria ouvi-lo. Seria uma monitoria inédita. Aproximei-me do grupo e, sem pensar em nada melhor, falei: “Parabéns, as fotos são excelentes. O senhor já viu São Paulo S.A.?”. Não tinha visto o filme do Person e respondeu algo que não entendi. Os dois caras com ele trabalhavam no Instituto Moreira Salles e foram responsáveis pela revelação das fotos e montagem da exposição. Detalhe: a mostra foi inaugurada em setembro de 2014, mas era a primeira vez que Flieg a visitava. Teceu poucas críticas e afirmou gostar do que presenciou.

 

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Um dos caras chamava-se Cídio, também gostava do filme e lembrou da associar as fotografias com o construtivismo russo. Flieg disse que achava engraçado as fotos de seu arquivo, que estavam esquecidas porque ele não gostou delas na época, serem expostas. Contava alguns detalhes das fotos, os lugares, as pessoas, o que aconteceu naquele dia. “Tá vendo essa sombra aqui? É aquela ali”, e apontou uma torre metálica que era protagonista em uma imagem e apenas sombra em outra foto. Estava com um bom humor contagiante.

Conversávamos enquanto esse fotógrafo de 91 anos levava uma cadeira de rodas pra passear. Por prudência levaram-na. Virou piada. Hans Gunter Flieg é judeu e nasceu na Alemanha. Chegou ao Brasil em 1939. Poucos meses depois, Hiltler invadiu a Polônia. Foi por pouco. Cídio disse que os jovens judeus, antes de partirem faziam cursos técnicos, para chegar nos novos destinos com alguma profissão. Flieg já era fotógrafo. Outro curiosidade. Em Portugal os judeus convertidos escolheram sobrenomes de árvores frutíferas: Oliveira, Pereira, Amorim. Na Itália e na Alemanha, optaram por nomes de amimais. Flieg, em alemão, significa mosca.

 

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No Brasil fez trabalhos publicitários e catálogos de indústrias. Especializou-se também em arte, fotografando a primeira Bienal de São Paulo. Na saída, diretores do museu foram encontrá-lo. Flieg perguntou se eles tinha um cafezinho. Claro. Pôs a mão no meu ombro e disse “então posso te convidar para tomar um café?”. E lá fomos todos e a cadeira de rodas dirigida pelo velho. Achei inusitado estar na mesa de reunião da diretoria do museu conversando e bebendo café. Os caras do IMS, de propósito, não revelaram minha identidade, afinal um simples visitante jamais poderia estar ali, ainda que devesse.

Foi Flieg quem propôs subirmos ao oitavo andar. Queria conhecer a vista. Levou a cadeira de rodas para que ela também participasse.  Perguntou se hoje em dia alguém fotografava os parques industriais, construções gigantescas, o desenvolvimento no Brasil. Não soubemos responder. Ali tirei essas fotos.

 

 

Fim de visita. Na entrada, esperavam um táxi quando o fotógrafo puxou papo com um casal de jovens. Mais uma coincidência. O jovem tinha família alemã e parte dela era Flieg. Inacreditável, eram parentes distantes. Ele prometeu comunicar-se. O táxi chegou, nos despedimos entre sorrisos e eles partiram. Resolvi caminhar, subir a Brigadeiro e, desse tempo, ver uma exposição de fotos sobre saudade no Itaú Cultural.