Caminhos da arte afro – parte 1

Quem gosta de arte, tá sem grana ou é mão de vaca, tem que visitar o Masp às terças-feiras, afinal a entrada é gratuita (o ingresso custa 15 reais nos outros dias).   Havia a exposição de Julian Schnabel, a do acervo, mas estava lá apenas por um motivo. Visitar “Do Coração da África“, sobre arte iorubá, antes do seu fim, no dia 7 de dezembro.

 

masp

 

Desci na estação Trianon, fui caminhando pela Paulista e quando cheguei, antes da entrada da bilheteria um cara me parou e me ofereceu suas poesias: “Grito de Dor”, pequeno livro de 8 páginas em papel sulfite. O nome dele é Leonardo e recusou-se a tirar uma foto:

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Entreguei cinco conto na sua mão. Menos pela poesia, mais para ajudar na viagem. Também já mochilei, mas trampando pela internet tinha a sobrevivência garantida. Nesse estilo nunca viajei, e não faço isso hoje porque talvez por não produza algo que se venda na rua, talvez por ter quase quarenta, talvez por simplesmente não ter coragem – ainda que em minhas viagens a estrada tenha ensinado que todo perrengue tem solução.

Despedi-me. Peguei o ingresso, deixei a mochila no guarda-volumes e esperei o elevador. O ascensorista foi simpático. Quando eu disse “nível 1” e continuei poucos segundos depois “arte ioruba, né?”, ele respondeu que era no subsolo: “Subimos até o segundo andar e depois te levo lá”, e falou de um jeito que parecia dirigir um táxi, o que era uma verdade naquele momento. Aproveitou pra anunciar todas as exposições e seus respectivos andares. Perguntei qual a exposição que ele mais gostava: “A do acervo, principalmente a Triunfo do Detalhe”, “Por quê?” , “Não gosto de arte contemporânea”  e continuou: “sabia que língua quer dizer tradutor em iorubá?”, “Olha só, não sabia”. A porta se abriu e ele desejou uma boa visita.

A pequena exposição tem 43 peças em 10 expositores, mas é empolgante pelas informações da cultura iorubá e sobretudo pela estátua de Exú, que recebe o visitante. Queria agradecer a minha memória por não carregar o celular. Sem bateria, as fotos são do gúgol.

exu

 

Exú é o orixá do movimento e da comunicação. A radicalidade das formas dessa estátua impressiona. É evidente. Negros somos extraterrestres. Os iorubás são 30 milhões de pessoas e vivem principalmente na Nigéria e no Benin. Milhões foram trazidos ao Brasil durante o período escravocrata, sendo uma das principais matrizes de nossa cultura.

Legal também o texto da mostra ressaltar a influência da arte africana na arte vanguardista europeia da primeira metade do século passado, sobretudo Picasso. Foi a ancestralidade africana que desenhou o novo.

 

ibejis, estatua de gemeos

Ibejis, estátua de gêmeos

 

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Gèlèdé, máscaras do poder feminino

 

Nas informações das máscaras Gèlèdé pirei com uma frase que dizia que as mulheres iorubas eram independentes economicamente de seus maridos.  Como assim? Mas não é a África atrasada em todos os sentidos? Numa rápida pesquisa, soube que as mulheres eram grandes negociantes, sendo maioria nos mercados. Elas compravam a colheita do cônjuge, vendiam e ficavam com o lucro. Além disso, esse cotidiano comerciante garantia trocas de outros bens simbólicos como notícias, receitas, moda, danças, músicas, estreitando relações sociais, acertando casamentos. As máscaras seriam um reconhecimento do poder da mulher na sociedade.

17 horas. Vi rapidamente e gostei bastante do Julian Schnabel. Queria fazer uma caminhada de arte afro pela cidade, mas vou ter que deixar para amanhã: conhecer o acervo da memória e do viver afro no Jabaquara e passar no museu AfroBrasil no Ibira.

 

Conversa na Barra Funda

“Calma. Vamos a pé ou de ônibus?”. Foi tudo o que ele disse.

Ela quis ir a pé. Na saída do metrô, encontraram um grupo fazendo grafite. A palavra maternidade, gigante no muro, chamou sua atenção. Quis se aproximar:

Eram dois grupos de defesa dos direitos das mulheres. Ela conversou sobre a legalização do aborto, sobre o absurdo de criminalizar uma questão de saúde. Da importância da mulher decidir. Do risco das clínicas clandestinas, ainda mais pra quem é pobre. Ele ficou quieto.

Foram pra casa dela. Ele evitava a discussão. Ela tinha mais uma cartada. “Vamos ver um filminho?”, perguntou. Ele prontamente aceitou – não conhecia 4 meses, 3 semanas e 2 dias. Seria um duro golpe pra ambos. Mas ele tinha que decidir.

Ela já estava decidida.

Eu Só Queria Jogar Banco Imobiliário

Acordou com aquela história na cabeça. Na noite anterior estava em uma festinha na casa de umas amigas. As conversas de sempre: aplicativos, viagens e cinema. Viu a caixa e animou-se. Queria jogar Banco Imobiliário. Veio das memórias da infância a vontade. Sincero e entusiasmado, parou a reunião pra anunciar a proposta. Ninguém quis. Envergonhado, ficou reclamando com os copos. Até que o único cara que não conhecia se aproximou e contou a história:

Tentou fingir pouco importar-se. Disse apenas: “boa história”. Mas sua noite acabou ali. Levantou-se e despediu-se das donas da casa. Sentia-se azedo enquanto esperava o elevador. Apertou o térreo. A porta fechava e disse a si mesmo: “merda de vida”. Pegou seu carro e andou pela marginal, admirando os reflexos das luzes no rio morto. Azedo e oco, chegou em casa e viu a tevê até o sono sugar sua consciência.

É manhã. A história. Perguntas enchiam a xícara preta de café. Enxergava seus olhos no reflexo opaco e escuro. Cada gole tinha um sabor de liberdade amarrada. De vida vigiada. Sentia-se oprimido pelo tempo. As impossibilidades do ser socavam seu cérebro. Riu-se. Tanto orgulho de si, e o que era? As escolhas de sua vida não eram suas. Eram, mas seguiam um mapa detalhado e obrigatório. Sentia-se passageiro. E estrangeiro.

Riu-se. Perguntas adolescentes. Com certeza vai passar. Pôs a cabeça na mesa e fechou os olhos. Quem sabe esse fluxo de ideias se esvai. Lembrou da aula de ioga. No final ficava deitado e a mulher dizia pra esvaziar a cabeça. Os pensamentos sumindo, sumindo. Dirigia o carro do avô, que fazia ok com o polegar; beijava a vizinha. O mar. O mar fugia, secava. Fechou os olhos com força. Pensou na careta que fazia, teve vergonha mas estava sozinho. Tinha que trabalhar. Os pensamentos perfuravam o silêncio. Nada funcionava.

Quando abriu os olhos:

Encostou a cabeça no volante e lembrou da ioga novamente. Fechou os olhos. Um fluxo de pensamentos o atravessava: beijava a mulher da ioga dentro do carro. Meu deus, o avô dirigia e fazia ok com o polegar. O mar. Estava no mar e afogava, náufrago. Ondas gigantes. Não havia ninguém, só horizonte. A morte molhada. Fechou os olhos com força. Abriu. Estava na festa.

O Livro e a Rua

Na porta do cinema, na mesa de um bar, passando pelo MASP uma pergunta te assalta: gosta de poesia? São os escritores que vendem seus sonhos na rua. Nunca comprei. Estivéssemos na década de 80 era Plínio Marcos quem te abordaria, camelô de sua obra. No livro Prisioneiro de uma canção, o dramaturgo santista conta esse período de sua vida.

Uma duas angolinhas/ Finca o pé na pampolinha/ O rapaz que joga faz?/ Faz o jogo do capão/ Diga lá Mané João/ Que retire seu dedinho/ Senão vai um beliscão

Essa era a canção do prisioneiro. Ensinada na infância pela mãe, é repetida como um mantra, para suportar as adversidades da rua. Na época, Plínio sentia-se abandonado. Depois da luta contra a ditadura, a redemocratização jogou-o à solidão. Os militares caíram, mas a pobreza e a violência permaneceram. A luta continuava nas “quebradas do mundaréu. Entristecido, assistia ao sucesso dos amigos. Navalha na Carne, Dois Perdidos numa Noite Suja estava esquecidas. Estar na rua era sua resistência.

Olha o livro ruim e barato. Quem quiser pode chegar. Olha o livro. Pode olhar sem medo. Ele não morde, só xinga, e como xinga! Se a senhora encontrar uma página que não tenha pelo menos dez palavrões ganha um automóvel zerinho. Olha o livro ruim e barato! Dou autógrafo e prometo morrer logo pra valorizar o livro!”.

Assim ele vendia sua obra. Admirava e aprendia com outros ambulantes: “tem que ter artimanha. Gente que inventou o macete no trampo e nunca mais teve que encarar mau tempo”. Ele descreve a arte de conquistar as pessoas que caminham apressadas: uma frase, um olhar que desate em um sorriso, que renda o olhar duro. Aí ele te ouve, e se cair no papo, compra. “Camelô vende otimismo”.

Mas é um livro de memórias. Ele lembra de Santos, do circo, da infância, de Cacilda Becker, dos sambas com Geraldo Filme e Toninho Batuqueiro e dos inúmeros personagens que retratou, sempre na corda bamba da vida e da morte. Passa as páginas dialogando com Cigano, uma voz cruel, zicando, censurando, dizendo que ele escapou da morte, mas sua vida seria uma merda. Autodepreciação sem intervalo comercial.

Você gosta de poesia? Olho para o rosto, mas não é Plínio Marcos.

É o Cleyton, poeta que declama e vende suas poesias no MASP: 

Mas há outras artimanhas e lugares inusitados para se vender livros. Em plena marginal, seis horas da tarde, o vendedor declama poesias* entre carros, caminhões, águas e refrigerantes.

*Trechos de Meditações sobre o Tietê, de Mário de Andrade

Valentim e as Valentes

Quando disse ao meu camarada que iria entrevistar algumas profissionais do sexo que trabalham parque, ele nada disse. Fez cara de “Vai lá, falô”, me cumprimentou e seguiu até a Estação da Luz.

Caminhando ou sentadas nos bancos, fingem-se absortas, despreocupadas, essas mulheres com mais de 40 anos. Poderia me enganar, mas basta um entreolhar para saber quem está ali trabalhando. Conversei com elas, gravei alguns papos com e sem permissão. Fiquei sabendo da concorrência com as mulheres que ficam na Estação da Luz, das tretas com os maridos-gigolôs. O preço começa em 50. Se ficar quieto chega a 30, se chorar faz por 20. O quarto, 10 conto. Meia-hora. Uma hora. Certos clientes são mais fiéis que seus ex-maridos, dizem. Mas queria histórias de vida, confissões descaradas. Isso leva tempo e intimidade. Até que procurando, achei esse documentário. E abandonei minhas gravações.

69 – Praça da luz / 69 – Luz Square from Bruno Zanardo on Vimeo.