Hartung e Romário

O Praça Ramos parou no ponto final; desci e sorri para um mendigo encostado na mureta pra Ladeira da Memória. Seu rosto dizia: “É… tô bêbado, meu amigo”. Devia ter puxado conversa. Teria contado que vi uns óculos pela metade no chão do coletivo. Eram haste e lente perdidas e órfãs. Ninguém no ônibus parecia ser o dono da outra parte. Pensei em alguém puto da vida, andando por São Paulo só com uma lente na cara, só de raiva porque seus óculos quebraram. Um pirata moderno. Contasse ao mendigo, talvez ele sorrisse comigo.

Queria ver uma exposição de vídeo-arte na Praça das Artes, perto do Largo do Paissandu. Belo lugar. Me deparei com uma mostra da Mafalda e um monte de gente. Foi difícil, mas encontrei a informação de que aquele era o único evento do lugar. Certamente confundi Praça das Artes com Paço das Artes, na usp. Parabéns. Ao invés de visitar o Quino, rompi com a comodidade e coincidência. Estar com Mafalda é estar em casa, e queria um acidente estético, algo novo e desconhecido pra mim. Fui pro Banco do Brasil ver Hans Hartung e sua Oficina do Gesto.

 

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Hartung (1904-1989) é considerado um dos mestres da arte abstrata e ganha pela primeira vez uma retrospectiva na América Latina. Nasceu na Alemanha e foi para França em 1926, vivendo definitivamente no país após a ascensão nazista nos anos 30. Lutou na Legião Estrangeira durante a Segunda Guerra Mundial e teve a perna direita amputada. Sua obra está ligada ao tachismo. Tache em francês significa mancha.

 

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Ninguém avisou, mas se quisesse uma ordem cronológica deveria começar pelo quarto andar e descer. Fui subindo e comecei pelos vídeos que documentam o cara trampando. Foi ótimo, um exemplo que me fez recordar da dramaticidade de pintar, da aventura de avançar com um pincel ou spray sobre uma tela ou qualquer superfície, pintar, desenhar, esse movimento sábio e selvagem que tece o imprevisível com harmonia. Não vou negar, o drama era também alimentado pelo vídeo estourado e pela idade de Hartung, que pintava numa cadeira de rodas. Tem um vídeo institucional que mostra um pouco disso.

 

 

Vassouras, aspiradores de pó, folhas e galhos de árvores, compressores, maçaricos, são vários os objetos que ele usava como ferramenta de trabalho. Gostei muito desses vinis velozes e incompletos, que ficam no terceiro andar, onde residem obras da década de 70 e 80.

 

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No quarto andar havia algumas de suas primeiras obras, quando ainda tinha preocupações figurativas. Fui embora e esqueci de visitar o subsolo.

 

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Sai de lá satisfeito e sedento pra uma caminhada pelo centro. Lembrei de um amigo me dizer que imigrantes africanos estavam frequentando igrejas evangélicas perto da Duque de Caxias. Que até estavam tocando nas bandas e a rítmica africana invadia os cultos. Isso seria interessante. Fui pra lá.

Dessa região próxima ao Terminal Princesa Isabel, pouco conheço. Depois da São João com a Ipiranga, tentei ir pelo miolo. Perguntei pra duas moças onde estava a Duque. Uma delas respondeu “é só seguir reto mesmo”.

 

Eram Lídia e Mirian. Momentos antes, Lídia inventou que compraria cigarros quando Mirian avisou que iria embora. Estavam as duas na casa de uma amiga em comum. Lídia disse que aproveitaria a carona do elevador. Inventava. Tinham que conversar. Passaram o portão do prédio e Lídia soltou seca: “Te acompanho até tua casa”. Mirian consentiu. No meio do caminho um cara perguntou onde era a Duque e Lídia respondeu: “vai reto”, com simpatia. Atravessaram a rua e Lídia aproveitou o ânimo – dar a informação lhe destravou a voz – e anunciou: “Vou me separar de seu filho”. Mirian se esforçou para não interromper o passo, para não tropeçar surpresa nem indignação.  Andaram mais três quarteirões em silêncio, em silêncio viraram à direita e pararam na frente do prédio. O portão se abriu, Mírian entrou. Sabia de tudo o que o filho tinha feito, não encontrava palavras nem tinha forças para contestá-la, quiçá defendê-lo. Era mãe mas ninguém merecia, era justiça a separação. Lídia parada esperava ansiosa uma resposta. Apenas ouviu a voz constrangida: “Fica com deus minha filha.”

 

Procurei as bandas de africanos evangélicos e encontrei nada. Passei pela Praça Princesa Isabel e vi uma galera jogando uma espécie de tênis com bola de futebol. Melhor: um tamboréu sem rede, com os pés e uma bola de futebol. Estava tentando entender como eles jogavam aquilo quando a bola escapou em direção à Avenida Duque de Caxias. Um cara que caminhava ali próximo apressou o passo e salvou a redonda, dominou e devolveu à meia-altura. Um menino se atrapalhou todo e matou de canela, empurrando a bola com ainda mais velocidade pra avenida. O cara não desanimou. Disparou, feito Cafú pra cruzar na linha de fundo, alcançando-a e passando de primeira, inclinando o pé, usando-o como spray ou pincel sobre o espaço, assegurando que ela viajasse rente ao chão e facilitasse o domínio do menino. Passou a bola e seguiu todo marrento, meio Romário, o rosto repleto de recordações e arte. Aposto: aquele passe valeu o seu dia.